Business

4 de abril de 2016

On segunda-feira, abril 04, 2016 by PeJose

A FÉ CELEBRADA: LITURGIA E TRANSMISSÃO DA FÉ



“Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com toda a confiança e esperança. Será também uma ocasião propícia para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força»… (SC 10). Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada… é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano” (Porta Fidei, 9).[1]





Vale a pena ler de novo esta citação da Carta Apostólica “Porta Fidei”, a convocação para o Ano da Fé, sobre a fé professada e celebrada ou, como se diz também no texto da mesma Carta, a celebração da fé na liturgia.
Não é preciso recordar em pormenor, mas sim ter presentes os objetivos que o Papa Bento XVI propôs no momento próprio para o Ano da Fé, ou seja, a reflexão e a redescoberta da fé, a preparação de uma autêntica e sincera profissão da mesma fé ao longo do Ano da Fé, uma renovada conversão ao Senhor e a intensificação do testemunho da caridade. Estes quatro objetivos, mais ou menos diretamente, têm a ver com a celebração da fé na liturgia, isto é, com a fé celebrada.
Ora bem, antes de entrar, por assim dizer, no tema, é conveniente esclarecer o conceito de que utilizamos quando nos referimos às relações entre a liturgia e a fé. O próprio Santo Padre, na Carta Apostólica Porta Fidei fala dos principais sentidos da fé. Com efeito, Bento XVI, desde o primeiro momento, apresentou o Ano da Fé como “um tempo de particular reflexão e redescoberta da fé” (PF 4), para recuperar não só os conteúdos da fé, ou seja, o que devemos crer (cf. PF 4; 9; 10; etc.), mas também o significado e alcance do ato de fé, como ele mesmo diz, “o próprio ato com que se crê” (PF 9). A este propósito escreveu a frase que citei no início como convite ao qual cada fiel cristão é chamado este ano a responder: “confessar a fé… intensificar a celebração da fé… descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada, e refletir sobre o próprio ato com que se crê” (PF 9).
Por isso devemos distinguir bem os dois aspectos da fé: o primeiro é o que diz respeito ao objeto da fé, o que devemos crer, celebrar, viver e tornar tema de oração, ou seja, os conteúdos da fé, o Credo numa palavra; o segundo aspecto é dito com palavras do Papa também na mesma Carta Apostólica, “o ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus” (PF 10). Esta distinção é explicada na I Parte do Catecismo da Igreja Católica, dedicada à Profissão de Fé, cap. III da I Secção: Eu Creio - Nós Cremos.
Para nos entendermos, podemos dizer que, ao falar das relações entre a liturgia e a fé, ou entre a celebração litúrgica e a fé, nos referimos quase exclusivamente ao primeiro aspecto, a fé enquanto conteúdo doutrinal ou fé em sentido objetivo, o objeto da fé. Podemos também chamar-lhe o mistério que celebramos, ou os mistérios da fé. É, em resumo, o que queremos dizer quando, na celebração de alguns sacramentos, proclamamos: “Esta é a nossa fé. Esta é a fé da Igreja, que nos gloriamos de professar, em Jesus Cristo, Nosso Senhor”, em referência explícita ao Credo. Como é evidente, não esquecemos a segunda acepção, o ato de fé pelo qual cada um crê, digamos o aspecto subjetivo e pessoal. A liturgia também o leva em conta, sobretudo quando se dirige aos fiéis, mas nós vamos fixar-nos, por agora, no primeiro sentido, principalmente ao dizermos que a liturgia exprime a fé da Igreja.[2]
Dito isto, divido esta conferência em três partes. Na primeira, de carácter geral, referir-me-ei à mútua relação entre a liturgia e a fé. Na segunda tratarei da liturgia como expressão da fé da Igreja, não em ordem à formulação da doutrina, mas à celebração. E, na terceira, a liturgia (bem celebrada) como transmissora da fé.
(A conferência tem um apêndice que se refere ao atual Missal Romano 1970-2008[3] e à sua importância para a celebração da fé).

1.        A LITURGIA E A FÉ: RELAÇÃO MÚTUA

Quando Bento XVI fala de fé professada, celebrada, vivida e rezada na realidade está a citar um parágrafo da Constituição Apostólica Fidei Depositum, pela qual João Paulo II promulgou em 1992 a edição típica latina do Catecismo da Igreja Católica. Como é fácil verificar, esses quatro qualificativos da fé correspondem, respectivamente, a cada uma das partes do citado compêndio da fé da Igreja. Com efeito, essas quatro partes do Catecismo contêm aspectos essenciais da vivência da fé, que não só não são independentes, mas até se relacionam entre si de modo muito estreito: O mistério cristão, objeto da fé (I parte do CIC), é celebrado e comunicado nas ações litúrgicas (II parte); está presente para iluminar e amparar os filhos de Deus no seu agir (III parte); e é o fundamento da nossa oração (IV parte).
O Beato João Paulo II explicava o referido mistério cristão, recorrendo, em primeiro lugar à liturgia: “A Liturgia é, em si mesma, oração: a confissão da fé encontra o seu justo lugar na celebração do culto. A graça, fruto dos sacramentos, é condição insubstituível do agir cristão, tal como a participação na Liturgia da Igreja requer a fé. Se a fé não se prolonga nas obras, está morta (cf. Tgo 14-16) e não pode dar frutos de vida eterna”.[4]
Esta afirmação do venerado Pontífice, formulada no contexto da promulgação do Catecismo da Igreja Católica, continua a ser muito oportuna porque nem sempre se tem em conta que a celebração litúrgica é o âmbito privilegiado em que se transmite e se forma a fé dos fiéis. Tem-se a ideia de que o lugar da formação da fé é a catequese ou o ensino da religião, e é verdade que a catequese e o ensino desenvolvem e alimentam a fé. Mas não em exclusivo e independentemente da vida de fé dos filhos de Deus que nasce e se alimenta precisamente nos sacramentos, que são liturgia. É bom recordar as afirmações do Concílio Vaticano II:
«Os sacramentos… enquanto sinais, também têm um fim pedagógico. Não só supõem a fé, mas também a alimentam, fortificam e exprimem por meio de palavras e coisas, razão pela qual se chamam sacramentos da fé. Conferem certamente a graça, mas a sua celebração também dispõe perfeitamente os fiéis a receberem-na com fruto, bem como a honrar a Deus do modo devido e a praticar a caridade» (SC 59; cf. 33; etc.).
Exprimir a fé, alimentá-la, etc., recorda a conexão entre a lex orandi e a lex credendi, e que a liturgia é um verdadeiro “lugar teológico” no qual se manifesta a fé da Igreja que contribui para a formação e educação da fé do povo cristão do modo que lhe é próprio.
Por seu lado, Bento XVI recordou também, nas vésperas da abertura do Ano da Fé e no final de uma série de catequeses nas audiências de quarta-feira sobre a oração, que perto da Palavra de Deus (a Sagrada Escritura), como escola perene que ensina a rezar e a dirigir-se a Deus de modo justo, está também a liturgia, à qual chama “espaço” e “fonte” para a formação dos fiéis na oração:
«Existe outro “espaço” precioso, outra “fonte” inestimável para crescer na oração, uma nascente de água viva em relação estreitíssima com a precedente (a Sagrada Escritura). Refiro-me à liturgia, que é um lugar privilegiado no qual Deus fala a cada um de nós, aqui e agora, e espera a nossa resposta.[5]
Certamente, a catequese e, em concreto, o Catecismo da Igreja Católica são grandes meios para conhecer e aprofundar os conteúdos ou mistérios da fé com toda a garantia que lhe dá a tradição da Igreja. No entanto, não são os únicos modos de formar e de educar na fé. Prova disso são as incontáveis citações e referências do próprio Catecismo, naturalmente à Sagrada Escritura, mas também aos símbolos da fé, aos ensinamentos dos Santos Padres, às definições e declarações dos Concílios, ao Magistério ordinário da Igreja e também, de modo particular, aos livros litúrgicos. Neste sentido a liturgia, plasmada nos ritos e nos textos litúrgicos, transmite também e de maneira muito eficaz, a fé da Igreja e simultaneamente dá forma e consolida a fé daqueles que nela participam. Entre os livros litúrgicos sobressai de modo extraordinário o Missal Romano, ao qual me referirei mais adiante.
Voltando ao texto da Carta Apostólica Porta Fidei citado no princípio e que exprime os objetivos do “ano da fé” o Papa Bento XVI salientou a íntima relação que existe entre a confissão da fé, a sua celebração na liturgia, e o testemunho. Recordo a frase principal: O Ano da Fé será também uma ocasião propícia para intensificar a celebração da fé na liturgia, e de modo particular na Eucaristia.[6] Por seu lado, a Congregação para a Doutrina da Fé, na Nota publicada em janeiro de 2012 com sugestões para a celebração do Ano da Fé ampliava esta referência à liturgia e à Eucaristia para o fortalecimento da fé:
«Na Eucaristia, mistério da fé e fonte da nova evangelização, a fé da Igreja é proclamada, celebrada e fortalecida. Todos os fiéis são convidados a participar dela de forma consciente, ativa e frutuosa, a fim de serem testemunhas autênticas do Senhor».[7]
Confissão da fé e celebração estão pois intimamente relacionadas, de modo que se implicam e condicionam mutuamente. O que se faz em favor da primeira repercute-se positivamente também na segunda. Vale a pena ter sempre muito presente esta estruturação não só ao expor a fé na catequese ou noutras formas do ministério da palavra, mas também ao preparar bem as celebrações e, como é óbvio, ao presidir-lhes e ao desenvolvê-las segundo o espírito e as normas da Igreja. Do celebrar bem, e do expor adequadamente na homilia o que celebramos, depende muitas vezes a recepção da fé por parte dos nossos paroquianos.
Vejamos agora de que maneira toda a liturgia e, portanto, não só a Eucaristia e os sacramentos mas também o Ofício Divino e o ano litúrgico proclamam, celebram e, sobretudo, exprimem os mistérios da fé e simultaneamente a comunicam e alimentam, a fortalecem e nela instruem, de modo a permitir que todos os fiéis cristãos, no Ano da Fé e não só, nos reencontremos, como deseja o Papa, com a “porta da fé… sempre aberta para nós, e que nos permite retomar o caminho que conduz à plena comunhão com Deus”.8

fonte: http://www.liturgia.pt/multimedia/pdf/2013_ENPL_02_JulianMartin.pdf