16 de março de 2014
On domingo, março 16, 2014 by PeJose
A propósito da adoração ao Santíssimo Sacramento e a missa:
Aprendendo da história
Frei José Ariovaldo da Silva, OFM
1. A prática de adorar o Santíssimo na missa hoje: alguns exemplos
Chega a ser impressionante, nestes últimos anos, a
volta das manifestações de adoração ao Santíssimo Sacramento durante a
celebração do memorial do sacrifício de Cristo, isto é, durante ou
imediatamente após a missa.
Muita gente, na hora da consagração, tem o costume de
sussurrar exclamações como: “Meu Jesus, eu te adoro”, ou, “Meu Senhor e
meu Deus”, ou, “Senhor, eu creio em ti, mas aumentai minha fé” etc.
Muitos padres, na hora da consagração, levantam devagar
e solenemente, bem alto, a hóstia consagrada e, depois, o cálice, para
adoração dos fiéis. Olhos fixos no pão e no vinho consagrados, ao som
das campainhas, todos adoram a Jesus que “desceu sobre o altar”, como
dizem.
Há padres que, logo após a consagração, interrompem a
Oração Eucarística, saindo com o Santíssimo Sacramento em procissão pela
nave a Igreja – chamam essa procissão de “passeio” – para adoração dos
fiéis com manifestações de aplausos, toques na hóstia por parte dos
fiéis para receber a cura etc.
Muitos, após a consagração, substituem a aclamação
memorial “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa
ressurreição” por cantos de adoração como: “Eu te adoro, hóstia divina”,
ou, “Bendito, louvado seja, o Santíssimo Sacramento” etc.
Muitos cristãos e cristãs, assim que recebem a comunhão
têm o hábito de se ajoelhar na capela do Santíssimo Sacramento para
adorar Jesus presente ali no sacrário. Como se não tivessem acabado de
“receber Jesus” no templo do seu próprio corpo!...
Há padres – e leigos também – que incentivam a adoração do
Santíssimo imediatamente após a missa, dando assim a impressão que a
comunhão não valeu, ou valeu pouco. Pois, dada a importância que se dá à
adoração e à bênção do Santíssimo logo após a missa, a comunhão no
corpo e sangue de Cristo acaba caindo no esquecimento, em segundo plano.
Como vi e ouvi, certa vez pela televisão, um padre animador proclamar
solenemente e com todo entusiasmo para a multidão, assim que terminou a
missa presidida pelo bispo: “Meus irmãos, agora vamos receber e bênção
do Santíssimo Sacramento... Não existe bênção mais importante do que
esta”! Conclusão: A maior bênção, que foi a participação no memorial do
sacrifício de Cristo, isto é, na missa recém-celebrada, deixou de ser a
mais importante!...
Alguns chegam a substituir a bênção final da missa pela bênção do Santíssimo Sacramento.
São alguns exemplos ilustrativos de como estão resgatando por aí o
sentido da missa mais como ato de adoração ao Santíssimo do que como
celebração do mistério pascal na forma de uma ceia. Inclusive com
manifestações de adoração ao Santíssimo Sacramento imediatamente após a
missa, colocando-a em segundo plano...
São costumes que tiveram uma origem, bem como um motivo por que se
originaram, na história da Igreja. Vejamos o que diz a história a
respeito. Ela pode nos ensinar muita coisa e nos iluminar em nossas
práticas celebrativas da eucaristia hoje.
2. Quando e por que evoluiu a prática de adorar o Santíssimo na missa
A prática de adorar o Santíssimo Sacramento durante a missa se
desenvolveu com toda força na passagem do primeiro para o segundo
milênio. Em plena Idade Média, portanto.
Antes, isto é, no primeiro milênio, sobretudo até o século IX, a
eucaristia era vista e vivida sobretudo como celebração memorial da
páscoa de Cristo, em clima de ação de graças, da qual participava
ativamente toda a assembléia, tendo como ponto alto desta participação a
comunhão no corpo e sangue de Cristo. Não havia adoração ao Santíssimo
durante a missa, como se entende e se faz hoje.
Aos poucos, porém, sobretudo a partir do século VIII-IX, a missa
vai se tornando cada vez mais “coisa do padre”. Os motivos são vários, e
não vem ao caso elencá-los aqui. Basta dizer que o clero vai aos poucos
monopolizando tudo na celebração eucarística. Os padres começam a rezar
a missa sozinho. E, mesmo havendo assembléia, adota-se o costume de os
padres fazerem tudo sozinho (orações, leituras etc.), em voz baixa, de
costas para o povo, em latim. O povo apenas assiste, de longe. Já não
participa mais, como era antes.
Com isso, os cristãos perdem também o estímulo em participar também
da comunhão recebendo o corpo e o sangue do Senhor. Esquecem-se assim
da ordem que Jesus mesmo deu: “Tomai e comei... tomai e bebei”. (Jesus
mandou comer e beber! Comer e beber é parte integrante e ponto alto da
participação na missa). Cada vez menos gente participa da comunhão.
Apenas assiste a “missa do padre”.
Outro fator que distancia o povo da mesa da comunhão na missa: Aos
poucos, por influência dos povos franco-germânicos, os cristãos de nossa
Igreja romana absorvem uma mentalidade quase doentia em relação à
divindade, vendo nesta um ser terrível, ameaçador, vigiando e
controlando nossas atitudes. Ligado a isso, se acentua uma mentalidade
obsessiva em relação ao pecado, ao castigo, ao inferno e purgatório. O
clima era, pois, de medo. Resultado: O povo fica com medo de comungar.
Pois comungar significava aproximar-se do Juiz terrível e ameaçador e,
possivelmente, correr perigo de castigo por nossos pecados.
Assim, no século XII, já praticamente ninguém comungava mais. Foi
preciso que o quarto concílio do Latrão, realizado em 1215, decretasse
uma lei determinando que todo católico devia comungar pelo menos uma vez
por ano, por ocasião da páscoa, depois de fazer uma boa confissão. Pelo
menos uma vez por ano! Como se vê, não era mais costume comungar em
cada missa.
O que o povo fazia então, enquanto o padre, lá distante no altar,
“rezava a missa”? Entretinha-se com rezas, novenas, devoções etc. E a
comunhão, o povo a substituiu pela adoração da hóstia. Ver a hóstia, de
longe, adorando-a, tornou-se uma forma de “comungar”. Por isso que,
então, os padres adotaram o costume de levantar bem alto a hóstia e,
depois, o cálice, na hora da consagração. Para o povo ver e prestar
adoração ao Senhor terrível que “desceu sobre o altar”, na hóstia
consagrada e no cálice de vinho. O desejo de ver a hóstia tornou-se
então uma verdadeira febre para os fiéis, o ponto alto, o momento mais
importante da missa. Introduziram até o costume de tocar campainhas na
hora da elevação, exatamente para chamar a atenção e enfatizar o
momento. Bastava ver a hóstia e o povo já se dava por muito feliz e
satisfeito.
Outra informação: A partir do século IX, mas com maior vigor a
partir do século XI, alguns teólogos de influência, dentre os quais
destaca-se Berengário de Tours, andaram espalhando idéias que colocavam
em dúvida a presença real de Jesus no pão e no vinho consagrados. A
Igreja, em reação a estes movimentos heréticos, desencadeou todo um
movimento no sentido de afirmar a fé na presença real. Para tanto,
propagou e reforçou a prática da adoração ao Santíssimo Sacramento,
dentro e fora da missa. Fora da missa, através de procissões do
Santíssimo, bênçãos do Santíssimo etc. Consequência: A missa, distante
do pensamento de Jesus e da prática dos cristãos dos primeiros séculos,
se transforma numa espécie “fábrica de hóstias consagradas” para serem
adoradas. Longe do pensamento de Jesus, porque na última ceia Jesus não
disse “tomai e adorai”; ele disse “tomai e comei... tomai e bebei”!
Como você vê, o costume de adorar o Santíssimo Sacramento durante a
missa foi desenvolvido na Idade Média, quando a Igreja havia perdido de
vista o verdadeiro sentido da missa como celebração memorial da páscoa
de Cristo e nossa (vejam o que Jesus disse: “Fazei isto em memória de
mim”!), que tem seu ponto alto no momento da ceia (comunhão). A missa,
em vez de ser em primeiro lugar um momento de adoração ao Pai, através
do memorial do sacrifício de Cristo que se entrega, na força do Espírito
Santo, transforma-se simplesmente numa ocasião privilegiada de adoração
à hóstia consagrada, ou, ao Cristo presente no pão e no vinho; mas
sobretudo no pão (na hóstia).
Esta mentalidade não foi superada nem com o concílio de Trento
(séc. XVI). Perpassou os séculos seguintes, até hoje. Nosso Brasil foi
evangelizado com esta mentalidade. Não tivemos outro tipo de
evangelização eucarística (refiro-me ao modelo de compreensão dos
primeiros séculos de cristianismo). O modelo medieval é que ficou muito
bem arraigado no nosso subconsciente religioso. Por isso, o costume de
adorar o Santíssimo na missa hoje, segundo os exemplos elencados no
início deste artigo, mereceria todo um longo trabalho de evangelização.
3. Desafios para o futuro
Nesses últimos anos, o papa João Paulo II fala de uma nova
evangelização. Nós diríamos: Precisamos re-evangelizar nossa cultura
religiosa eucarística de tipo medieval, valorizando, à luz do concílio
Vaticano II, a compreensão bíblica e dos Santos Padres no que se refere à
celebração eucarística.
Não se trata de menosprezar e muito menos querer eliminar as
devoções ao Santíssimo Sacramento. Trata-se de, teologicamente, colocar
as coisas no seu justo lugar. Não misturar as coisas. Missa é missa.
Adoração ao Santíssimo é outra, com seu sentido e valor[1].
A mistura é coisa da Idade Média que, como vimos, acabou colocando a
adoração ao Santíssimo acima do verdadeiro sentido da missa.
Também não se trata de dizer que não adoramos Cristo na hora da missa[2].
Os Santos Padres o adoraram! Trata-se de evitar exageros que colocam a
prática da adoração ao Santíssimo acima da Oração Eucarística e da
própria comunhão eucarística.
Neste sentido, a CNBB nos dá com muita sabedoria a seguinte
orientação: “Na celebração da Missa, não se deve salientar de modo
inadequado as palavras da Instituição (= consagração), nem se interrompa
a Oração Eucarística para momentos de louvor a Cristo presente na
Eucaristia com aplausos, vivas, procissões, hinos de louvor eucarístico e
outras manifestações que exaltem de tal maneira o sentido da presença
real que acabem esvaziando as várias dimensões da celebração
eucarística”[3].
Enfim, o grande desafio mesmo está em desenvolver na alma dos
pastores e dos fiéis tudo o que o concílio Vaticano II resgatou em
termos de teologia e celebração da eucaristia. Peço demais a Deus que o
espírito deste importantíssimo concílio, no que diz respeito à
eucaristia, não seja abafado pelo individualismo religioso tão forte
nesta nova passagem de milênio.
Bibliografia
ALDAZÁBAL José. A Eucaristia. In: BOROBIO Dionísio. A celebração na Igreja 2: Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993, p. 204-244 (“Evolução histórica e compreensão eclesial da eucaristia”).
BASURKO Xavier & GOENAGA José Antônio. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO Dionísio. A celebração na Igreja 1: Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990, p. 37-160 (sobretudo p. 84ss.).
CABIÉ Robert. A Eucaristia. In: MARTIMORT Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração II. Petrópolis: Vozes, 1989 (sobretudo p. 130-132: “A devoção medieval”).
COLDEBELLA Silde. Adoração na missa?. In: Revista de Liturgia n. 153 (mai/jun 1999), p. 33-34.
LUTZ Gregório. A presença real de Jesus Cristo na eucaristia. In: Revista de Liturgia n. 153 (mai/jun 1999), p. 8-10.
MARSILI Salvatore. Teologia da celebração da eucaristia. In: VV.AA. A eucaristia: teologia e história da celebração (= Anámnesis 3). São Paulo: Paulinas, 1987, p. 7-202.
MELO José Raimundo de. A participação da assembléia dos fiéis na celebração eucarística ao longo da história: e-volução ou in-volução?. In: Perspectiva Teológica 32 (2000), p. 187-220.
VISENTIN Pelágio. Eucaristia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. Dicionário de Liturgia.
São Paulo: Pulinas, 1992, p. 395-415 (sobretudo p. 399-402: “A
celebração eucarística: as grandes etapas de sua evolução histórica”).
[1]Cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, A sagrada comunhão e o culto do mistério eucarístico fora da missa, 7a
ed., Paulus, São Paulo 1975 onde, entre outras coisas, ensina que “a
finalidade primária e primordial de conservar a Eucaristia fora da Missa
é a administração do Viático (= comunhão para os enfermos); são fins
secundários a distribuição da comunhão e a adoração de nosso Senhor
Jesus Cristo presente no Sacramento. A conservação das sagradas espécies
para os enfermos introduziu o louvável costume de adorar-se este
alimento celeste conservado nas igrejas. Este culto de adoração se apóia
em fundamentos válidos e firmes, sobretudo porque a fé na presença real
do Senhor tende a manifestar-se externa e publicamente” (Introdução, n.
5, p. 10).
[2]O
próprio missal prescreve uma genuflexão do sacerdote na hora da
consagração, primeiro para adorar a hóstia consagrada e depois para
adorar o cálice.
[3]CNBB, Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática Católica (= Documentos da CNBB 53), Paulinas, São Paulo 1994, n. 41, p. 22.
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