Business

9 de abril de 2016

On sábado, abril 09, 2016 by PeJose




2. A LITURGIA COMO EXPRESSÃO DA FÉ DA IGREJA

 Já me referi, citando João Paulo II e Bento XVI, ao vínculo interno que une a fé professada e a fé celebrada. Aprofundemos um pouco mais essa relação que abrange vários aspectos. 

A) A celebração litúrgica é profissão de fé em acto

Em primeiro lugar, convém ter presente que a Igreja crê conforme reza (cf. CIC 1124). Esta frase, incorporada no Catecismo da Igreja Católica li-a eu, pela primeira vez, quando preparava uma conferência para a XIV Semana de Teologia que teve lugar em León em 1981 dedicada à fé e à catequese. A frase, que se encontrava no documento base do Congresso Eucarístico Internacional de Lourdes (1981) preparado pelo episcopado francês, é, por sua vez, a citação de uma proposta da fé aos católicos de França em 1978 intitulada: “Il est grande le mystère de la foi!” (É grande o mistério da fé”), tradução francesa da aclamação Mysterium Fidei da oração eucarística. Vale a pena ler integralmente o texto do Catecismo da Igreja Cató- lica que fez sua a dita frase: «A fé da Igreja é anterior à fé do fiel, que é chamado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos. Daí o adágio antigo: “Lex orandi, lex credendi”. “A lei da oração é a lei da fé”, a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento constitutivo da Tradição santa e viva (DV 8)» (CIC 1124; cf. 167; 181; 949; etc.). Neste sentido, cada celebração litúrgica, principalmente se é a Eucaristia, é uma profissão de fé em acção, não tanto da fé pessoal do ministro e dos fiéis que estão a celebrar a liturgia, mas da fé da Igreja, de acordo com o axioma, já insinuado, de que a norma da oração é a norma da fé (lex orandi - lex credendi). Por isso, o sujeito celebrante não é, sem mais, uma assembleia concreta ou um grupo [determinado] de fiéis mas, em última instância, a Igreja, corpo de Cristo, unida à sua Cabeça e Sumo Sacerdote e santificador (cf. CIC 1136; 1140-1141). Isto é importante, porque nem o sacerdote é um delegado da comunidade que o elegeu ou escolheu para que presida e dirija a celebração, nem a comunidade é um grupo de fiéis mais ou menos autónomo, mas sim uma assembleia convocada e reunida pelo facto de pertencer a um povo sacerdotal que tem a sua origem na Igreja ou comunidade apostólica que se vai renovando e perpetuando ao longo dos séculos e em todos os lugares onde tenha sido estabelecida. Por isso na liturgia, sem desvalorizar os elementos locais ou circunstanciais, o que conta antes de tudo é a transmissão do Mysterium fidei, especialmente na Eucaristia que edifica a Igreja e que é “fonte e ponto culminante” de toda a acção evangelizadora e pastoral (cf. 1 Cor 11, 23; 15, 1.3; SC 10). Por isso, a aclamação Mysterium fidei, que se segue às palavras da instituição na oração eucarística e que foi traduzida de três modos: “Mistério da fé”; “Mistério da fé para a salvação do mundo”; “Mistério admirável da nossa fé”, significa o reconhecimento e a proclamação de que o sacramento da Eucaristia, além de ser um mistério de fé no sentido, poderíamos dizer, intelectual do termo, é antes de tudo o grande sinal ou sacramento daquilo que a Igreja é e crê firmemente como fundamento da sua existência e missão no mundo.9 O facto de toda a celebração, do princípio ao fim, ser profissão da fé eclesial também se manifesta na recitação do Símbolo da fé ou nas promessas baptismais na vigília pascal, e nas celebrações do baptismo e da confirmação e através de outras fórmulas eucológicas ou orações litúrgicas, e inclusive nos ritos, gestos e sinais, ou seja, em todos os elementos da liturgia, cada um segundo as suas características próprias. A fé que se professa, se vive e se celebra na liturgia com palavras e gestos é sempre a fé da Igreja, assumida e reconhecida como própria, por uma assembleia concreta e por determinados fiéis, por si mesmos ou, no caso do baptismo de crianças, em nome dos que ainda não são capazes de a confessar e que deverão assumi-la e professá-la mais tarde (cf. CIC 1253-1255).10 Mas, em todo o caso, a celebração litúrgica, enquanto manifestação principal da Igreja (cf. SC 41), é sempre lugar necessário -embora não único- no qual se confessa a fé. Assim o afirma o ministro do baptismo quando diz, e toda a assembleia concorda: “Esta é a nossa fé. Esta é a fé da Igreja, que nos gloriamos de professar, em Jesus Cristo, Nosso Senhor”. 11 

B) A liturgia exprime a fé da Igreja em sentido amplo

Mas deve afirmar-se algo mais. A liturgia é, ela própria, expressão da fé da Igreja na medida em que existe uma profunda relação entre o mistério da salvação -ou os mistérios da fé- e a sua expressão ritual ou litúrgica. Com efeito, os mistérios da fé, enquanto acontecimentos salvíficos, não são apenas objecto da fé da Igreja ensinada pela revelação divina, mas também enquanto constituem o conteúdo da celebração. Voltando ao axioma “lex orandi - lex credendi”, o seu significado e alcance põem em relevo, antes de mais, a adequação entre as verdades da fé e a sua celebração na liturgia. De facto, a liturgia reflecte sempre uma doutrina da fé e um certo ensinamento, embora a sua finalidade primeira não seja a de instruir. Na maioria dos casos a liturgia pressupõe e segue a fé revelada e ensinada pela Igreja no seu magistério, reafirmando-a na vida dos crentes. Mas por vezes a liturgia precede a fé proposta pela Igreja, constituindo um factor muito poderoso da sua explicitação, por exemplo nalguns dogmas marianos.12 Não obstante, não é à liturgia que pertence propor a doutrina da fé, mas ao magistério da Igreja. Neste sentido, foi muito importante a referência ao Catecismo da Igreja Católica que fiz no princípio, seguindo os ensinamentos do Beato João Paulo II e de Bento XVI. Por outro lado, a liturgia não costuma estabelecer com precisão ou fixar fórmulas de fé, mas limita-se a maior parte das vezes, a manifestar o sentir comum ou histórico acerca de um mistério da fé. Com efeito, na liturgia há textos que têm uma procedência histórica muito concreta e que correspondem a um momento determinado do ponto de vista da história do dogma e das controvérsias teológicas. Por este motivo, ao estudar um texto ou um determinado testemunho da liturgia, há que realizar análises pacientes e contrastadas que ajudem a distinguir o que é expressão particular de uma época ou de um possível autor, daquilo que constitui o conteúdo verdadeiramente universal da fé da Igreja, afirmada “sempre e em toda a parte”. 

C) A liturgia tem valor de “lugar teológico”

Pelas mesmas razões deve reconhecer-se também que a liturgia é um verdadeiro “lugar teológico” da fé eclesial, embora seja conveniente ter em conta que, quando ela exprime a fé, não o faz em ordem à formulação de uma doutrina ou ensinamento, mas em ordem à celebração. Na eucologia, correctamente interpretada, e no conjunto dos gestos, símbolos e elementos que integram a acção ritual, existe certamente uma verdadeira teologia litúrgica da doutrina da fé, tanto do ponto de vista dos textos bíblicos e eucológicos, como do ponto de vista da expressão simbólico-ritual. Neste sentido, a teologia litúrgica é equiparável à teologia bíblica ou à teologia patrística, enquanto «lugares teológicos» para o estudo e a reflexão sobre a doutrina da fé. Em consequência, a expressão da fé da Igreja na liturgia, com todas as suas características, contribui também de maneira muito eficaz para a formação e o enriquecimento da fé dos fiéis que participam nas celebrações litúrgicas. Com efeito, a Eucaristia, os sacramentos, o ano litúrgico, a liturgia das horas e todos os sinais litúrgicos, não só supõem a fé e a exprimem mediante palavras e gestos, mas também “a fortalecem e a alimentam” (SC 59). Isto deve-se ao facto de que os sacramentos e, por extensão, as acções litúrgicas, “conferem certamente a graça, mas a sua celebração também dispõe perfeitamente os fiéis a receberem-na com fruto, bem como a honrar a Deus do modo devido e a praticar a caridade» (ib.). Esta função nutritiva e enriquecedora da fé denomina-se mistagogia. Não é agora o momento de entrar na análise desta realidade, mas de recordar apenas a sua importância para a formação da fé de todos os fiéis, especialmente dos que são iniciados nos sacramentos pascais.



NOTAS:
5.  Bento XVI, Audiência geral de 26-09-2012. 
6.  Cf. supra, nota 1. 
7. Congregação para a Doutrina da Fé, Nota com indicações pastorais para o Ano da fé, de 06-01.2012, n. IV, 2. 
8. Bento XVI, Carta Apostólica Porta fidei, cit., n. 1.
9. A expressão Mysterium fidei procede do interior das palavras da instituição do cálice no Cânone Romano. Foi tirada dali por se tratar de uma exclamação da Igreja, que não pertence às palavras do Senhor. Sobre o seu sentido cf. J. A. Jungmann, El sacrificio de la Misa (BAC 68, Madrid 1963), 755-757; Mons. P. Tena, “Este es el sacramento de nuestra fe”, em Comité para el Gran Jubileo del año 2000, La Eucaristía, alimento del pueblo peregrino. IX Congreso Eucarístico nacional, Madrid 2000, 93-108. 
10. Ora bem, a profissão da fé eclesial por parte dos fiéis é sempre um acto pessoal e em certo modo individualizado, mesmo dentro do contexto comunitário e participativo da acção litúrgica. É por este motivo que se responde “sim, creio”, no escrutínio que precede o baptismo ou na renovação das promessas baptismais. De igual modo se faz no singular a recitação ou o canto do símbolo da fé, com a excepção que representa a liturgia hispano-mozárabe que usa o plural. Em todos os casos, a dimensão comunitária torna-se patente na recitação por todos em simultâneo, ministros e fiéis, reflectindo assim a síntese entre ambas as dimensões integradas na unidade litúrgica e eclesial.
11. Celebração do Baptismo das Crianças, Gráfica de Coimbra. 
12. Cf. C. Vagaggini, El sentido teológico de la liturgia, BAC 181, Madrid 1959, p. 487